quinta-feira, 20 de maio de 2010

Vício.

Sentia-se desesperado, inseguro. Suava frio. Olhava para os lados a toda hora. Acendia um cigarro atrás do outro, já estava na terceira carteira de Marlboro.

A noite era fria, o moleton por cima da camisa parecia não surtir efeito em aquecer. Suas mãos tremiam dentro dos bolsos.

Quando viu um rapaz se aproximar numa bicicleta, seu pânico pareceu diminuir. Tirou do bolso uma nota de cinqüenta amassada, entregou para o rapaz, em troca, recebeu um papelote que tratou de enfiar no bolso.

Passos apressados o fizeram rapidamente entrar no bar, indo direto ao banheiro e se trancando lá.

Abriu o papelote e colocou o pó sobre a pia de granito preto, usando um cartão de crédito para separar três generosas carreiras iniciais. Usou uma nota de dois reais para fazer um "canudinho" e cheirou.

Estava feliz, sentia que sua vida era melhor agora, tudo parecia voltar ao normal.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O Esquerdista.

Muita coisa muda quando se atravessa sete décadas, sendo que metade da última a vida começava a lhe fugir.

Já havia alguns meses que estava apodrecendo naquela cama de hospital, tudo em conta de um maldito câncer. Era preciso se contentar apenas com suas lembranças em seus momentos de lucidez.

Diogo Marques Vasconcelos, mais conhecido como "Digão" em seu tempo de mocidade. Relembrava toda a sua ideologia política.

Digão havia sido forte líder estudantil na época da ditadura militar, sendo detido algumas vezes antes de ir exilado para Cuba na década e 1970.

Quando a repressão havia diminuído, a Lei da Anistia proclamada, pôde finalmente voltar para sua pátria amada e idolatrada como professor de filosofia.

Quando a ditadura acabou, Digão Marques, como era conhecido dentre os meios acadêmicos e boêmios, usava a camisa do Che ao dar aulas. Conheceu Sandrinha nas rodas intelectuais, mulher com quem viveria junto por um bom tempo.

Colocou a estrelinha do PT nas eleições de 1989, depois daquele debate mal editado favorecendo o Collor passou quase 10 anos sem assistir um programa sequer da Globo, além de ter pintado o rosto de verde e amarelo e saído às ruas.

Já pelo ano de 2005 a camisa do Che só possuía o buraco da estrelinha do PT, a maior decepção que Digão teve por toda a vida. Foi mais ou menos nesta época em que o maldito câncer começou a se desenvolver.

No hospital, lembrava-se de tudo o que havia passado na sua vida, sempre balançando a bandeira vermelha. Via-se perto da morte. Nem Marx, nem Nietzsche, nem mesmo o médico poderia fazer alguma coisa que não fosse apenas drogá-lo para que não sentisse dor.

Era estranho a visão de mundo quando se estar com o pé na cova. Digão havia sido um grande esqerdista, mas jamais se envolveu como político, se aposentara como professor universitário.

Sentiu-se numa corrida de Fúrmula 1, onde todos os carros estão a centenas de quilômetros por hora quando o seu carro estanca e não quer mais pegar.

Lembrou-se que, quando seu pai morreu, disseram-lhe: "A vida continua". Digão morreria, apesar de não estar conformado, já sabia disso. Mas seu egoísmo falava mais alto. Não queria morrer, não queria que a vida continuasse sem sua presença.

Queria ver uma Esquerda de verdade tomar o poder, queria ver os grandes acontecimentos do mundo, queria ao menos terminar de ler o livro que deixara pela metade quando tinha seus quinze anos.

Era preciso engolir todas as suas frustração, já era tarde demais para utopias.

domingo, 2 de maio de 2010

Amor de mãe.

Uma festa de gala. No bairro nobre da cidade a sociedade burguesa se reunia em mais uma comemoração, bebendo vinhos caros com o dedo mindinho levantado. Políticos corruptos, advogados assassinos, banqueiros da máfia. Longe dali, muito longe dali, onde a noite é mais escura, a área pobre. Vidas miseráveis abaixo da linha da pobreza.

Dona Maria deveria ter por volta dos cinqüenta e tantos anos. Aparentava ter muito mais. Morava num barraco pobre onde nenhuma pessoa realmente merecia morar. Porém, estava melhor que a maioria dos moradores do bairro.

As estrelas sumiram quando o céu fechou. A água da chuva caía na calçada e escorria pelo boeiro.

Com os grossos pingos de água lhe martelando a cabeça, uma pobre garotinha de apenas seis anos andava apressadamente. O rosto molhado não só pela chuva, mas também por lágrimas amargas. Renatinha, neta de dona Maria, que agora batia na porta com sua pequenina mão. Em silêncio, ouviu passos de dentro do barraco, em seguida, a porta se abriu. A avó olhou com seriedade para a neta, logo a fazendo entrar.

Renatinha, assustada mas calada, nada fez quando dona Maria lhe jogou uma toalha. Não perguntou o que havia acontecido, entendeu tudo apenas em olhar para as coxas ensangüentadas da pobre menina.

Dona Maria foi até um cômodo do barraco, passando pelo pano que deveria ser a parede. Tirou uma grande faca da gaveta. A lâmina estava cega e enferrujada. Uma expressão de ódio no rosto. Passou pela pequena sala, praticamente ignorando a menina. Saiu na chuva sem se importar, virou à direita andando até o terceiro barraco da rua. A porta estava aberta.

Um outro barraco, menor e sujo. Os poucos móveis caídos. Gritos. Adentrou a sala, atravessou e logo avistava a pequena cozinha. Um homem magro e feio batendo numa mulher também magra. A mulher tombou, caindo para trás, o homem deu-lhe dois pontapés na coxa. A lâmina cega da faca de dona Maria entrou nas costelas do sujeito. Tirou a faca e o encarou.

José tinha uma barba mal feita com um bigode grande, cabelo curto e assanhado. Era o genro da dona Maria. Agora tinha um buraco nas costelas, por onde sangrava. Seu hálito era de cachaça. Sua mão suja com sangue da esposa voou no pescoço da sogra, que acabou por desferir mais um golpe: desta vez acertou a genitália, rodando a faca.

"Filho da puta! Isso é pra tu nunca mais estuprar minha neta, seu merda", rugiu dona Maria. José deixou uma lágrima cair, em seguida, caiu ajoelhado no chão com a faca por entre as pernas. "Ande, minha filha, vamos pra minha casa", falou, num tom de desprezo. A filha se levantou e deu um tapa na mãe, gritando com ódio pelo que havia acontecido com seu amado marido.

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Texto escrito originalmente em janeiro de 2009, postado em meu outro blog já desativado.