sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A vida é assim, meu cumpade

Agora sem ficção, sem texto querendo falar algo nas entrelinhas, apenas o papo reto.

Pode-se dizer que já passei por muitas coisas nessa vida, mesmo com apenas 18 anos de idade. Muita merda que fede pra caralho. Porque você só sabe que a merda fede quando se aproxima dela.

A vida não é colorida, com falso romantismo nem "felizes para sempre". A vida é uma onda repleta de emoções, sensações, sentimentos, que de repente te dá um caldo e você não sabe onde vai parar. E ela é curta. Curta até demais, e começa a acabar no nascimento.

Tem que ter sangue no olho, não pode vacilar. Porque na vida real não tem santo, não tem papai do céu que ajude na hora que o bicho pega. É cada um por si. Tem os parceiros, os irmãos. São raros, mas quando aparecem, são os únicos em que podemos confiar. Que podem nos salvar. Conheço uns dois ou três assim.

Chega uma hora na vida que a gente sabe como a máquina funciona, que a gente vê, sente e faz coisas que acabam quebrando essas muralhas que o falso moralismo da sociedade nos impõe.

A gente só aprende com as cagadas que deixamos pelo caminho. Mas você tem que tá ligado e sair de cena antes que a bosta toda bata no ventilador.

Só não te abro os olhos pra essa vida porque eu já fechei os meus há muito tempo.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Um amor, ainda que amor

Em uma praia deserta, a brisa salgada acariciava os corpos sujos de areia. Um crime pervertido tendo a lua como testemunha. A paixão doentia, rendida pela recusa, a violência como um ato de amor. As lágrimas descendo pelo rosto, pele com pele, amor selvagem.

Os gritos levados pelo vento não chegavam a ninguém. Mas ela era linda, rosto de porcelana, longos cabelos loiros e os olhos da cor do céu. Possuía o cheiro da inocência. Inocência esta perdida por um amor descontrolado, enfurecido, mas mesmo assim um amor sincero e cauteloso. Um amor perigoso, sem razão. A emoção predominando em resposta à necessidade obsessiva daquilo que não se pode ter. Não da maneira correta.

Um amor que deixa marcas, que machuca. Que traumatiza. Mas um amor acima de tudo, mesmo que violento, ainda puro.

sábado, 18 de dezembro de 2010

O mal do século

A chuva cai, lavando a calçada, mas não minha culpa. Pois não há pecado pior que a inércia. Pecado tão pesado quanto sua punição, ainda em vida. E minha barba branca é prova de tão vil punição.

O fundo do copo me faz companhia, junto com as tristezas e as mágoas da vida. Minha alma se desfaz na mesa de um bar como o gelo se desfaz na dose de uísque barato. E meu último fio de dignidade se vai, junto com a fumaça do cigarro levada pela brisa noturna do verão.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Abandonado, desesperado.

Apenas de cueca, sentado na varanda do enorme apartamento com vista para o mar, Carlos observava a noite.

Mãos trêmulas, tentava inutilmente acender um cigarro. Não fumava há anos, mas naquele momento já não se importava muito com seus pulmões. O isqueiro sem gás não ajudava. Já havia bebido meio litro do seu melhor uísque, 18 anos, que há tempos guardava para uma ocasião especial. Julgava que a hora havia chegado.

Rico, com filhos bonitos e abandonado pela mulher. Precisava de coragem para aquilo. Sobre uma mesinha de vidro na varanda, uma arma antiga. havia sido de seu pai, da época da guerra. Estava carregada, funcionando.

O cano da arma tinha gosto de metal. Estava gelado, mas não havia problema. Apenas não queria errar o tiro.

As crianças acordaram com o disparo, começaram a chorar ao ver que o pai havia dado um tiro na própria boca.

Carlos acordou na UTI, tonto por causa dos sedativos. Iria sobreviver. O tiro pegou na espinha, estava tetraplégico. Mas feliz, tinha dado tudo certo. Agora sua esposa seria obrigada a voltar para casa e cuidar do marido.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Na cadência do samba

Como todo domingo, religiosamente, parava no bar. Sentava-se na mesma mesa de sempre e pedia uma cerveja. E o samba começava a ecoar pelo local, para a alegria de mulatas rebolando e alguns malandros sambando.

E logo chegava sua cachaça - com o limãozinho, senão faz mal -, um torresmo de tira-gosto. Para alguns, procurava no fundo do copo o fundo do poço, mas tudo o que procurava era uma razão para viver. Uma das boas, não uma qualquer. E o samba, a cachaça e o cigarro eram uma mistura não das mais saudáveis, mas daquelas que vale a pena seguir.

Maria, sua mulher, já estava cansada da vida boêmia do marido, assim como Aurora, sua filha. Mas ambas eram maiores de idade e vacinadas, trabalhavam e poderiam se sustentar.

A morte chega para todos, é fato. Mas não pode-se saber a hora nem o dia, apenas aproveitar o tempo que resta antes que ela chegue.

E no caso, já estava esperando ali. O pandeiro, o violão, o cavaco. O samba em sua cadência, a cuíca chorando e o coro das pessoas cantando. Tomou sua última dose da branquinha, fez careta e comeu um torresmo. Sorriu. Isso sim era felicidade. Só que começou a sentir aquela coisa no peito, quando caiu da cadeira chamou a atenção de alguns. Todos pararam. O samba silenciado, menos a cuíca, que continuava chorando a perda de seu amante.



(Baseado na música de mesmo título.)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Natasha

Quando Ana chegou em casa o dia estava quase amanhecendo. Havia sido uma noite muito difícil. Maquilagem borrada, cheiro de suor, cabelo despenteado, um olho roxo e alguns hematomas na coxa.

Morava num pequeno apartamento de dois quartos. Três andares. Morava no segundo. Subiu as escadas, rodou a chave silenciosamente, abriu a porta e entrou com seus passos leves no apartamento. Não queria fazer barulho. Notou o pequeno e franzino Guilherme, em seus 6 anos de idade, dormindo no sofá em frente à minúscula televisão. Sentiu certa pena do coitado, deveria ter dormido muito tarde esperando a mãe voltar. Deixaria o coitado faltar aula naquele dia.

Foi ao banheiro, trancou a porta e acendeu a luz. Lavou o rosto e observou no espelho a maquilagem desmanchar-se no rosto em direção à pia. Era bonita. Se não fossem os golpes da vida, seria linda. Mais um dia de trabalho. O olho roxo ficaria pior quando acordasse, problema com cliente. Jogou o chiclete fora, sentou-se no vaso sanitário e urinou. Não agüentava mais aquela vida.

Quando entrou no box do banheiro, deixou a água escorrer por todo o seu corpo. Não estava ferida apenas fisicamente, mas emocionalmente. Demorava no banho, como se estivesse lavando toda a sua vida, uma borracha no passado e em todas as besteiras que fez.

Aos 17 anos tudo o que queria era aproveitar a vida ao máximo. Já estava para completar 30. Estava colhendo tudo aquilo que havia plantado. Todos os seus passos não pensados a levaram exatamente onde estava. Enquanto o mundo acabava ela simplesmente dançava.

Quando Guilherme nasceu ela não sabia quem era o pai. Mas precisaria criar seu filho.

Seu corpo, como uma mercadoria usada, já não valia tanto quanto antigamente. O prazer gerou o vício, o vício gerou um fruto, tudo então virou dor. Mas amava seu filho acima de tudo. Estava viva apenas por causa dele. Lamentava isso.

Ana Paula queria morrer, sair daquela vida, entregar-se de vez. Desistir. Era seu desejo, se morresse estaria satisfeita. Mas não podia. Não enquanto tivesse um filho para cuidar.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Independência.

O dia estava um tédio. Eu me imaginava independente trabalhando a semana toda, mas saindo pra curtir e beber o final de semana dirigindo uma Ferrari, rico e com várias mulheres ao lado. Isso quando eu tinha 15 anos, mas hoje vejo que não é bem assim.

Moro num maldito apartamento sala-e-quarto. Tudo bem que minha mãe me ajudou a comprar algumas coisas, o emprego de garçom não é o mais lucrativo. Mas dá pra ter o mínimo de luxo, tipo muitos calos nos pés, chulé, e poder passar os dias de folga coçando o saco.

Era um domingo. Eu não sou do tipo cheio de amigos, o tédio por vezes me consome. A independência tem umas merdas grandes até demais, por exemplo, simplesmente cortaram a internet. Ou seja, fiquei sem RedTube e a última vez que comi alguém foi pagando. Paguei R$30, então imagina o naipe da criatura. E ultimamente tô tão cansado que não consigo pensar em nada que seja dormir, até pra bater punheta tá me faltando imaginação. Porra, e pensar que já tenho 25 anos! Eu queria ficar rico antes dos 20, escrever 5 livros antes dos 18 e ser o maior pegador antes dos 16. isso quando eu tinha 15 anos. Aquela época era bem melhor, véio, sem noção.

Já, já vai começar o Pânico na TV, mas tô sem um pingo de bom humor. Porra, eu queria ter uma Ferrari agora, não agüento mais pegar um ônibus lotado. Enfim, é a quinta vez que assisto a Cães de Aluguel. Mês que vem, quando o salário sair, alugo Pulp Fiction. Assistir filme bom uma vez por mês é foda. Mas vale a pena, o Tarantino é um verdadeiro gênio.

Bem, até aqui meu domingo tava totalmente normal, sem nenhuma coisa incomum. Vez ou outra passava um carro no meio da rua tocando música eletrôniva. Eu que devia tá dirigindo um carro com som grande tocando música eletrônica, porra. Só escuto música porque às vezes vou pra casa da mamãe e gravo uns CDs no computador dela e boto pra tocar um sonzinho que tenho aqui. Mas ultimamente eu não tenho escutado pra não gastar energia. Tá foda.

Porra, eu queria ter minha Ferrari agora. Enfim, essa minha vida tá uma merda. Caralho, adoro essa cena que o Mr. Blonde arranca a orelha do policial, é carnificina total. Afinal, é a marca do Tarantino, todo esse sangue. Merda, se eu tivesse passado na faculdade de cinema eu poderia estar fazendo bons filmes hoje.

Certo, não agüento mais me empanturrar de Doritos e Nova Schin. Aliás, odeio Nova Schin, só bebo porque é o jeito. R$o,97, é o que se pode com alguns trocados.

Se eu morresse agora, será que alguém sentiria falta de mim? Acho que só minha mãe. Devo ter sido a grande decepção dela, ela queria um filho médico. É uma boa pessoa, tudo o que queria era me ver independente, e cá estou eu. Agora todo final de ano ela viaja para algum estado diferente, fez amigas novas da mesma idade, ela até que tá bem. Eu é que tô cada vez mais fodido.

Certo, quando ela morrer eu me suicido. Mesmo se ela me deixar um dinheirinho, acho que não vai dar nem pra tentar uma faculdade particular. Tentar ser alguém. Pera, ela tá me telefonando.

Merda, era a vizinha. Ela acabou de ter uma parada cardíaca, falei com ela ontem. Merda, emrda, merda! Tudo bem. Porra, mãe, como você pôde? Ah, vai, tudo bem. Já tava com 70 anos, coitada. Tudo bem, tudo bem.

Ainda não assisti o filme da Liga da Justiça, nem dos Vingadores. Ah, tá beleza. Posso conviver sem isso. Ainda bem que esse prédio vagabundo e caindo aos pedaços é bem alto, moro no 12º andar. São 12 apês por andar, sem área de lazer. Mas dá pra eu morrer.

Porra, essa brisa é muito gostosa. Esse vento, essa sensação de liberdade. Putz, esqueci de deixar uma carta! Ah, que diferença vai fazer? Bem, lá vamos nós!

Caramba, essa queda livre é fantástica e... pera, que dia é hoje?

Puta que pariu! Hoje é 1º de abril, a vizinha é minha irmã, que todo 1º de abril liga dizendo que a mamãe morreu.

É, o chão tá cada vez mais perto. Minha mãe vai me matar quando me achar morto.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Peão

E lá estava José, aos seus cinqüenta e tantos anos de idade nas costas. Magro, barba, dentes caindo, chapéu de palha, cheiro de suor e uns trapos que chamava de roupa.

Este humilde narrador é, com orgulho, cearense. Nordestino. E, como muitos outros contistas de minha terra, tenho que falar sobre a dificuldade do povo em seu enorme clichê. Dificuldade esta que nunca presenciei realmente, mas que, assim como você, reconheço sua existência, e em suma hipocrisia tentarei passar nestas linhas o sofrimento do peão José como se eu realmente conhecesse a seca do sertanejo.

Um botequim sujo e nojento, com cheiro nada agradável. Mesas velhas, bancos comidos por cupins. Ficava no meio da estrada, cercado por um mato que morria cada dia mais agora que a rara época de chuva passava.

O caboclo José virava outra dose de sua cachaça. Dormira muitas vezes no meio daquela estrada, porém, chorara muito mais num mato escondido pela humilhação de existir. Seus pés descalços, suas mãos cheias de calo e um olhar amargo de sua ignorância sem estudos. Era homem e ainda assim tinha que puxar saco de candidato a vereador para conseguir umas moedas, como fazia a maioria de seus conhecidos.

Um golpe no coração lhe era dado toda vida que seu filho mais novo chorava desesperado pela fome que consumia seu corpo desnutrido.

Certa vez tentou a cidade grande, se arrependeu, matou um tentando comida e acabou na prisão. Nessa época foi que seus insignificantes sonhos morreram. Passou poucos anos atrás das grades, quando saiu logo arrumou de voltar para sua cidade, voltar para seus familiares. Conseguiu emprego na prefeitura ganhando pouco, mas pelo menos podia dizer que tinha um emprego. E se orgulhava disso, afinal, era um emprego direito e honesto.

Emprego de prefeitura não dura muito. Quatro anos, com sorte pouco mais. Mudou prefeito, mudaram funcionários. Mais uma vez José se sentia humilhado. Morava numa cabana inacabada de dois quartos, coisa realmente abaixo da linha de pobreza.

Vez ou outra ainda consgeuia uns bicos. Vida miserável e que não acaba nunca foi o que fez de José o que ele é: homem sem educação, sem estudo, sem dinheiro.

Vida de peão que passa despercebida. Se você vê um peão tentando a vida numa cidade grande, logo fecha o vidro do carro dizendo que não tem moeda nem trocado. Povo trabalhador que não tem medo de pisar no chão e reza para não ser pisado. Josés do Brasil que sobrevivem a dias de cão. Preto, índio, branco, caboclo, mulato, povo brasileiro sofredor e que constroem o país que não lhes dão nada em troca.

Peão guerreiro, abatido e que segue em frente.

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Texto escrito em 31 de março de 2009, postado em outro blog meu já desativado.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Vício.

Sentia-se desesperado, inseguro. Suava frio. Olhava para os lados a toda hora. Acendia um cigarro atrás do outro, já estava na terceira carteira de Marlboro.

A noite era fria, o moleton por cima da camisa parecia não surtir efeito em aquecer. Suas mãos tremiam dentro dos bolsos.

Quando viu um rapaz se aproximar numa bicicleta, seu pânico pareceu diminuir. Tirou do bolso uma nota de cinqüenta amassada, entregou para o rapaz, em troca, recebeu um papelote que tratou de enfiar no bolso.

Passos apressados o fizeram rapidamente entrar no bar, indo direto ao banheiro e se trancando lá.

Abriu o papelote e colocou o pó sobre a pia de granito preto, usando um cartão de crédito para separar três generosas carreiras iniciais. Usou uma nota de dois reais para fazer um "canudinho" e cheirou.

Estava feliz, sentia que sua vida era melhor agora, tudo parecia voltar ao normal.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O Esquerdista.

Muita coisa muda quando se atravessa sete décadas, sendo que metade da última a vida começava a lhe fugir.

Já havia alguns meses que estava apodrecendo naquela cama de hospital, tudo em conta de um maldito câncer. Era preciso se contentar apenas com suas lembranças em seus momentos de lucidez.

Diogo Marques Vasconcelos, mais conhecido como "Digão" em seu tempo de mocidade. Relembrava toda a sua ideologia política.

Digão havia sido forte líder estudantil na época da ditadura militar, sendo detido algumas vezes antes de ir exilado para Cuba na década e 1970.

Quando a repressão havia diminuído, a Lei da Anistia proclamada, pôde finalmente voltar para sua pátria amada e idolatrada como professor de filosofia.

Quando a ditadura acabou, Digão Marques, como era conhecido dentre os meios acadêmicos e boêmios, usava a camisa do Che ao dar aulas. Conheceu Sandrinha nas rodas intelectuais, mulher com quem viveria junto por um bom tempo.

Colocou a estrelinha do PT nas eleições de 1989, depois daquele debate mal editado favorecendo o Collor passou quase 10 anos sem assistir um programa sequer da Globo, além de ter pintado o rosto de verde e amarelo e saído às ruas.

Já pelo ano de 2005 a camisa do Che só possuía o buraco da estrelinha do PT, a maior decepção que Digão teve por toda a vida. Foi mais ou menos nesta época em que o maldito câncer começou a se desenvolver.

No hospital, lembrava-se de tudo o que havia passado na sua vida, sempre balançando a bandeira vermelha. Via-se perto da morte. Nem Marx, nem Nietzsche, nem mesmo o médico poderia fazer alguma coisa que não fosse apenas drogá-lo para que não sentisse dor.

Era estranho a visão de mundo quando se estar com o pé na cova. Digão havia sido um grande esqerdista, mas jamais se envolveu como político, se aposentara como professor universitário.

Sentiu-se numa corrida de Fúrmula 1, onde todos os carros estão a centenas de quilômetros por hora quando o seu carro estanca e não quer mais pegar.

Lembrou-se que, quando seu pai morreu, disseram-lhe: "A vida continua". Digão morreria, apesar de não estar conformado, já sabia disso. Mas seu egoísmo falava mais alto. Não queria morrer, não queria que a vida continuasse sem sua presença.

Queria ver uma Esquerda de verdade tomar o poder, queria ver os grandes acontecimentos do mundo, queria ao menos terminar de ler o livro que deixara pela metade quando tinha seus quinze anos.

Era preciso engolir todas as suas frustração, já era tarde demais para utopias.

domingo, 2 de maio de 2010

Amor de mãe.

Uma festa de gala. No bairro nobre da cidade a sociedade burguesa se reunia em mais uma comemoração, bebendo vinhos caros com o dedo mindinho levantado. Políticos corruptos, advogados assassinos, banqueiros da máfia. Longe dali, muito longe dali, onde a noite é mais escura, a área pobre. Vidas miseráveis abaixo da linha da pobreza.

Dona Maria deveria ter por volta dos cinqüenta e tantos anos. Aparentava ter muito mais. Morava num barraco pobre onde nenhuma pessoa realmente merecia morar. Porém, estava melhor que a maioria dos moradores do bairro.

As estrelas sumiram quando o céu fechou. A água da chuva caía na calçada e escorria pelo boeiro.

Com os grossos pingos de água lhe martelando a cabeça, uma pobre garotinha de apenas seis anos andava apressadamente. O rosto molhado não só pela chuva, mas também por lágrimas amargas. Renatinha, neta de dona Maria, que agora batia na porta com sua pequenina mão. Em silêncio, ouviu passos de dentro do barraco, em seguida, a porta se abriu. A avó olhou com seriedade para a neta, logo a fazendo entrar.

Renatinha, assustada mas calada, nada fez quando dona Maria lhe jogou uma toalha. Não perguntou o que havia acontecido, entendeu tudo apenas em olhar para as coxas ensangüentadas da pobre menina.

Dona Maria foi até um cômodo do barraco, passando pelo pano que deveria ser a parede. Tirou uma grande faca da gaveta. A lâmina estava cega e enferrujada. Uma expressão de ódio no rosto. Passou pela pequena sala, praticamente ignorando a menina. Saiu na chuva sem se importar, virou à direita andando até o terceiro barraco da rua. A porta estava aberta.

Um outro barraco, menor e sujo. Os poucos móveis caídos. Gritos. Adentrou a sala, atravessou e logo avistava a pequena cozinha. Um homem magro e feio batendo numa mulher também magra. A mulher tombou, caindo para trás, o homem deu-lhe dois pontapés na coxa. A lâmina cega da faca de dona Maria entrou nas costelas do sujeito. Tirou a faca e o encarou.

José tinha uma barba mal feita com um bigode grande, cabelo curto e assanhado. Era o genro da dona Maria. Agora tinha um buraco nas costelas, por onde sangrava. Seu hálito era de cachaça. Sua mão suja com sangue da esposa voou no pescoço da sogra, que acabou por desferir mais um golpe: desta vez acertou a genitália, rodando a faca.

"Filho da puta! Isso é pra tu nunca mais estuprar minha neta, seu merda", rugiu dona Maria. José deixou uma lágrima cair, em seguida, caiu ajoelhado no chão com a faca por entre as pernas. "Ande, minha filha, vamos pra minha casa", falou, num tom de desprezo. A filha se levantou e deu um tapa na mãe, gritando com ódio pelo que havia acontecido com seu amado marido.

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Texto escrito originalmente em janeiro de 2009, postado em meu outro blog já desativado.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Feliz Páscoa.

Deu uma bela tragada no cigarro barato, soltando-o pelas narinas e aproveitando cada momento de prazer oferecido por aquela nicotina.

Sábado de aleluia no calendário cristão.

A fome o deixara magro, a arma no bolso do velho e desbotado blusão de moleton parecia bem mais pesada com as seis balas, havia conseguido com um primo que estava metido no tráfico. Sentia-se trêmulo por dentro, por fora parecia disposto a fazer qualquer coisa para conseguir o que queria. Seu alvo era um supermercado.

Passou pela entrada e foi a uma prateleira qualquer, fingindo estar olhando alguns produtos. Sua cara de poucos amigos e a aparência de pobre chamava a atenção dos seguranças, que se comunicavam pelo rádio para ter uma atenção especial naquela figura.

Pegou uma sesta e começou a jogar produtos aleatórios nela. Ao passar por um corredor, olhou para cima. Um enorme ovo de chocolate embrulhado num papel dourado, feito de vários tipos de cacau e com trufas de licores dentro. Parecia a coisa mais incrível que já havia visto. Pegou-o com enorme cuidado, como quem tem nos braços pela primeira vez o filho recém nascido. Colocou-o sorrateiramente dentro do blusão de moleton e se dirigiu ao caixa. Uma senhora terminava de passar algumas compras e já estava pagando.

Seguranças, que já sabiam do furto que iria ser cometido, posicionavam-se estrategicamente na entrada. A senhora saiu. "Próximo", anunciava o caixa.

Saiu em disparada, sacando uma arma e dando dois tiros num segurança que logo dava passagem livre. Conseguiu sair do supermercado, agora a policia iria lhe seguir. Montou sua moto que pegou de primeira (agradeceu a Deus por isso). Sua moto 125 cilindradas se mostrou fiel ao cortar o trânsito sem bater o motor, nunca tinha ido tão rápido.

Cerca de dois minutos e três viaturas da polícia militar perseguiam a moto, que virou à esquerda, entrando num campo de uma comunidade pobre. Era ali onde morava, numa favela no centro do bairro nobre da cidade. Os policiais atiraram algumas vezes, nenhum tiro o acertou. Deveria largar aquela moto depressa. Entrou num beco estreito, as viaturas não passariam por ali. Na saída do beco caiu, levantou-se e logo estava correndo a pé. Os policiais, que também haviam abandonado as viaturas, estavam em seus calcanhares.

O nome do nosso perseguido era José. Um bom homem que jamais havia se rendido à vida criminosa antes, mas o desemprego e a vida sub-humana o fizeram cair na tentação.

José se preocupava com o ovo de chocolate no bolso do blusão, era tudo o que importava. Um tiro cortou o ar e o acertou de raspão no ombro. Caiu à porta de casa, aos pés de seu filho de cinco anos, que havia visto na televisão um comercial de ovos de páscoa e se encantado. José não tinha mais dinheiro nem para o arroz do almoço. Sentiu um enorme prazer de missão cumprida ao ver o rosto do filho encher-se de alegria ao receber aquele ovo de chocolate em mãos. José agora poderia morrer feliz.

Mais sons de tiros cortando o ar. Não importava, havia cumprido sua missão. O sangue lavava a calçada. Pronto? Já estava morto?

E José abriu os olhos. Não sentia suas pernas, apenas sentiu o que um pai deve sentir ao se deparar com o filho morto com um ovo de páscoa destruído e banhado de sangue em mãos.

Sem final feliz; sem ressurreição.

Apenas um Feliz Páscoa.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Um bom pai.

Era sexta-feira. Nove, talvez dez anos de idade. Com uma mochila pesada nas costas aquele garoto caminhava pela calçada, pisando propositalmente em folhas secas para ouvi-las estalando. O sol quente do meio dia açoitava-lhe a testa, enquanto seu pai segurava-lhe a mão.

O pai já não era tão jovem, marcas em seu rosto demonstravam o quanto ele já havia vivido.

- Pai... - falava o garoto, dando um pequeno pulo para desviar de uma garrafa no caminho.

- Diga, meu filho.

- Eu posso passar o final de semana com a vovó? - perguntou, dando uma parada e olhando para o pai com os grandes olhos molhados.

- No outro eu deixo você lá - disse, num sorriso simpático.

O garoto sentiu um nó na garganta, um aperto no coração. Continuou andando. Os finais de semana sempre eram mais difíceis e o pai parecia particularmente animado naquele dia. Sentia saudades da sua mãe que havia sido levada por Deus.

O almoço havia sido frango. Não sentiu o gosto. Mal engoliu a comida e o pai o mandou tomar banho.

O sangue misturava-se com a água do chuveiro e as lágrimas ao escorrer pelo ralo do banheiro. Os soluços do choro pareciam infindos, não pela dor, mas pela humilhação de ter seu pequeno e frágil corpo violado.